quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Volta à Ilha - Dia 2

 E continuam as peripécias da volta à ilha começadas no post anterior!


Dia 2 

 Acordei tantas vezes durante a noite que lhes perdi a conta, ou era com frio, ou por causa de algum barulho estranho, ou por nenhum motivo que me recorde. De manhã, enrolado dentro do saco-cama, não foi fácil encontrar a vontade para sair e enfiar os pés feridos nas meias frias molhadas e enlameadas, mas tinha que ser. E o que tem que ser tem muita força, por isso esvaziei a almofada, sai do ninho, dobrei o saco-cama, arrumei o amoque e arrastei-me até à zona onde tinha feito a fogueira na noite anterior.
 Queria aquecer o leite e secar as meias e as calças mas quando peguei no isqueiro, vi uma racha minúscula de lado por onde ele estava a perder o gás todo! Sem isqueiro, tudo aquilo que tinha planeado, a panela, o arroz, o sal, tudo seria perfeitamente inútil, por isso era preciso arranjar uma solução e depressa. Tinha que haver alguma coisa, pensei em cola, talvez, qualquer coisa que pudesse usar para tapar o buraco, mas enquanto pensava, o gás escapava-se e no final não consegui nada. Mas havia ainda gás suficiente para aquela única vez por isso tentei queimar os plásticos mas o isqueiro pegou fogo e tive que o atirar ao chão para não me queimar. Foi a primeira e a última tentativa.
 Sem fogo não haveria maneira de secar a roupa por isso voltei a meter pensos novos nas bolhas, calcei as meias lentamente e com muito cuidadinho e enfiei tudo para dentro dos botins frios e molhados. Como não me apetecia mesmo nada vestir as calças que também estavam molhadas, vesti os calções de banho e segui viagem. 

 A praia estendia-se ao largo, com um belo ilhéu exótico mesmo em frente. Continuei até não dar mais até que cheguei a uma parede pouco acolhedora que me separava do resto da ilha, mas como lá ao fundo continuava a haver caminho, fui avançado pelos calhaus rolados. Péssima ideia. A parede só foi ficando mais íngreme e a praia acabou subitamente numa curva. Com as bolhas nos pés, todos os passos preciosos estavam contados por isso não me apetecia nada voltar para trás. Em vez disso pus-me a subir uma encosta mais agressiva. Por baixo estavam as ondas e da parede brotavam apenas raízes sólidas por isso pus-me a escalar aquilo com a ajuda do machin que usava para cravar na madeira e puxar-me aos poucos, metro a metro, em direcção ao topo. Felizmente que correu tudo bem e as pedras debaixo dos meus pés e as raízes a que me segurava permaneceram solidamente presas à parede.

 Lá em cima já não havia trilho à vista por isso foi preciso usar e abusar do machin mais uma vez para trilhar o meu próprio caminho pela floresta. Na paragem seguinte aproveitei para descansar enquanto via o estado do isqueiro e como ele já estava vazio, todo o gás espalhado pela floresta, misturei o leite em pó e o açúcar com a água fria do rio que corria aos meus pés. Três colheres de sopa bem cheias de pó branco com uma de açúcar e temos uma caneca de potência açucarada! Como o isqueiro já era, era escusado continuar a passear o arroz por isso deixei-o ficar noutra cabana abandonada que encontrei ali à frente. "Espero que venha a ser útil para alguém!"
 Todos os rios largos são bons para reencontrar o caminho e para isso é apenas preciso percorrer as margens em busca de pegadas na lama ou folhas pisadas ou raízes cortadas. Foi assim que dei com o caminho novamente, por isso segui-o até ser subitamente interrompido por uma voz a gritar “Amigo!”
 Parei logo, e olhei em volta. Só floresta, palmeiras e trepadeiras e pássaros… “Será que ouvi mal?” Mas a resposta chegou depressa. “Amigo, espera!” Era um vinhateiro a chamar-me do topo da sua palmeira!
 O senhor chamava-se José Arlindo e vive ali, naquele barraco onde deixei os sacos de arroz! Ao que parece tem para lá umas galinhas escondidas e tira vinho de palma e caça e é feliz assim, longe de tudo e todos. Como eu devia parecer meio perdido ele ofereceu-me vinho e levou-me até Burnay onde garantia haver um homem que era guia e me podia levar todo o caminho até Porto Alegre. Disse que se fosse com ele, demoraria um dia apenas mas eu disse-lhe que não era preciso porque não tinha pressa! O José era alto e tinha uma passada larga, por isso vi-me à rasca para o acompanhar com as feridas nos pés. À medida que passávamos pelos penhascos ele só se lembrava de histórias de pessoas que tinham morrido lá. Uma de um feitor branco que caiu num cavalo, outra de um branco que não aceitou ajuda e foi sozinho. Tudo acabava morto.

 Burnay também tinha um par de cabanas de madeira construídas ao pé da praia mas desta vez havia cães e porcos. O tal guia é que não estava lá por isso eu rejeitei educadamente a oferta e fiquei-me apenas com umas indicações: “Vai até ao fundo da praia, salta rio, e quando chegar à rocha, sobe só.” E assim fui. Por aquela altura as feridas nos pés só pioravam e a humidade e fricção acumuladas entre os botins e a pele já começava a fazer novas feridas de lado nas pernas. A subida que se seguiu foi brutal e não ajudou nada mas também não havia muito que pudesse fazer porque quando o botim começa a “roer” a pele já não há muito que se possa fazer, qualquer coisa que se meta ali ou sai, ou abre mais a ferida. Só podia suportar. E quando olhei para trás, vi que estava a ser seguido por um dos cães do caçador! O bicho já era velhinho e estava esquelético, como todos os cães de caça costumam estar. Por mais que eu subisse, por mais rios que atravessa-se, por entre todas as encostas fundas onde eu me perdia, o cãozito aparecia sempre algures. Ficou comigo tanto tempo que lhe dei um nome e comecei a falar com ele por tudo e por nada. Ficou o meu Takashi.
Takashi - O cão que adoptei (ou ele é que me adoptou) por um dia.
- Oh Takashi, estás a mostrar-me o caminho ou a fazer com que eu me perca ainda mais? – Disse eu, tantas vezes.

 O que sei é que a certa altura tropecei noutro trecho do caminho antigo e segui-o por entre os bambus e as palmeiras, ao lado de blocos de rocha enormes, até a um rio largo onde estava um senhor a pescar. Ele assegurou-me que tinha chegado a S. Miguel, mais uma zona com um par de cabanas habitadas por gente simpática e sorridente. O dia estava a acabar. As feridas nas pernas ardiam no seu auge, tão más como as dos pés, por isso a primeira coisa que fiz quando vi o mar avancei em silêncio, pronto para tirar os botins. Nada mais importava. Tinha que ir molhar os pés na água salgada para desinfectar e limpar toda aquela lama e suor. Claro que isso foi imensamente estúpido porque não só fez com que todas as feridas ardessem numa esplendorosa cacofonia de dor, como deixou que areia preta e fina entrasse para dentro das bolhas abertas em carne vive.

Panorâmica da praia de S. Miguel
 Ainda assim, forcei-me a ignorar a dor e deixei os botins e as meias a secar junto à fogueira. Depois fui montar o amoque numas goiabeiras e sentei-me com o pessoal em cima de uma das canoas. Como estavam já a terminar de fazer um petisco qualquer e eu só tinha vegetais e umas latas, cortei uma cenoura, uma cebola e um alho e inventou-se para lá uma salada que comemos todos com o charoco que eles tinham pescado acompanhado com fruta assada e banana cozida. Alto petisco, devo dizer! Nunca tinha provado aquele peixoto pequeno e feioso mas com azeite de palma fica realmente bom! Quando estava ali a comer à luz do frontal comecei subitamente a cheirar qualquer coisa estranha. Algo parecido com pneu queimado... Até que ouvi os gritos! Um dos meus botins estava a arder! Um rapaz ainda correu para o salvar mas a borracha derreteu num instante e nem a meia se salvou! Acho que o culpado deve ter sido um dos mil porcos que vive para lá...

“Boa…” pensei eu “…sem botim nem meia e com os pés todos estragados não sei como vai ser…” mas felizmente que um dos rapazes disse imediatamente que me oferecia uma meia enquanto o outro disse que não havia problema e ainda se podia aproveitar o botim cortando o cano queimado. Claro que aceitei a meia e assim ficou. Fui-me deitar feliz mas com as pernas todas a arder e as feridas abertas a colar ao saco-cama.

4 comentários:

  1. Pah cala-te c as bolhas e feridas! Já não suporto criar imagens mentais!!! Mas a ideia de ires desinfetar no mar foi muito boa, devias é ter feito isso mais vezes pq também acelera a cicatrização! deixa é marca =P

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  2. Não me calo nada! E se estás a criar imagens mentais tão boas ainda bem! É sinal que estou a conseguir transmitir bem o que sentia. Amanhã haverá mais! Ehehe

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  3. Ah pois é, eu farto-me de rir com as tuas peripécias. A descrição é muito boa e "obriga-nos" a criar imagens e a viver um pouco também as tuas aventuras um bocado arriscadas... Só precisas ter mais cuidado contigo, e mai nada!!

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  4. é pena os erros ortográficos: "passa-se" em vez de "passasse", etc.

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